sábado, 25 de julho de 2009

Homem/animal - arte como anti-humanismo

  • por Catarina Pombo Nabais in Omar Kohan, Walter e Müller Xavier, Ingrid (orgs.), ABeCedário de criação filosófica, Belo Horizonte, ed. Autêntica, 2009, pp. 133-8.
O Homem é um animal racional. Desde Aristóteles que esta definição, incessantemente retomada, nos persegue e nos enaltece. Ela constitui uma tentativa quase obsessiva de distanciar o homem face ao animal, de o expulsar do mundo opaco e mudo da animalidade. O homem seria detentor de uma característica única, a racionalidade, que irremediavelmente o elevava acima de todos os outros animais. Ao homem ficava reservada a possibilidade de fazer Filosofia, Ciência, Arte. Curiosamente, também foi Aristóteles quem primeiro definiu a Arte como mimésis da Natureza. A arte é uma actividade exclusivamente humana mas em profunda relação com o mundo natural. A obra de arte imita a Natureza porque, em primeiro lugar, a desdobra nos seus duplos, a replica, e porque, em segundo lugar, é pensada a partir do estatuto de um ser vivo, como totalidade orgânica, como a articulação funcional das partes de um todo à semelhança de um organismo. Isto significa que, para Aristóteles, a arte é uma técnica do orgânico artificial, daquilo que, criado pela habilidade humana (techne), tem todas as características do ser vivo – singularidade, totalidade, autonomia, finalidade interna.
No século XX, Deleuze foi o filósofo que mais profundamente rompeu com a visão aristotélica do homem. Em vez de pensar a essência do homem como o único animal racional, Deleuze explora os lugares de indeterminação e de indiscernabilidade entre o homem e o animal. Uma vez mais, é a arte que serve de operador. Ela é o exemplo por excelência, o lugar que melhor deixa perceber essa indistinção. De facto, para Deleuze a arte é expressão de um mundo que existe por si, de um espaço no qual o homem e o animal se tornam indiscerníveis. Deleuze faz assim da arte o denominador máximo de um anti-humanismo cerrado contra a tradição aristotélica.
Como Deleuze afirma: «A arte não é privilégio do homem. Messiaen tem razão em dizer que muitos pássaros são, não só virtuosos, mas artistas, e são-no em primeiro lugar pelos seus cantos territoriais»[1]. Segundo Deleuze, a arte começa com impressões territoriais que não reenviam a nenhum sujeito humano que as capte. Ela deve por isso ser pensada a partir das marcas constituintes de domínios estabelecidos por animais nas suas demarcações de territórios, de moradas, de marcas expressivas, de assinaturas. «As qualidades expressivas – escreve Deleuze em Mil Planaltos – as cores dos corais, são auto-objectivas, ou seja, elas encontram uma objectividade no território que elas traçam»[2]. É neste sentido que Deleuze insiste na tese segundo a qual o gesto primordial da arte é recortar, talhar, delimitar um território, para nele fazer surgir as sensações. «A arte começa com o animal, pelo menos com o animal que talha um território e faz uma casa»[3]. Demarcar um território é o primeiro momento da criação artística. «Eis tudo o que é necessário para fazer arte: uma casa, posturas, cores e cantos»[4]. Em limite, a arte é o acontecimento primordial das próprias formas da Natureza, o movimento auto-expressivo do sensível, uma epifania de formas de vida.
Segundo Deleuze, a arte renvia a uma teoria dos estratos e da estratificação do mundo, a uma tópica dos códigos, dos meios, dos ritmos a partir dos quais a expressão emerge. É portanto uma Filosofia da Natureza que este hiperrealismo, não do homem, mas da Natureza, convoca. Conceitos que pertencem à geologia, à biologia, à psico-química – como coagulação, sedimentação, ou conjuntos moleculares – misturam-se com categorias semiológicas para descrever o fenómeno da obra de arte. A criação artística, atraversada por forças não-humanas, projecta-se no universo, no cosmos, na vida inorgânica. O anti-humanismo de Deleuze apresenta-se pois como um programa cosmológico, um estudo das forças que trabalham no artista, seja ele homem, animal ou planta.
Para melhor perceber a relação do artista com as forças inhumanas, Deleuze propõe o conceito de devir. Devir é a experiência da absoluta alteridade, do absoluto desnudamento de si-mesmo, de todos os traços que caracterizam alguém como um indivíduo particular e estratificado. O artista, enquanto aquele que entra em processo de devir, é um ser de absorção, de captação, de assimilação, em suma, é uma esponja do mundo. Nessa captação do mundo, o artista descobre uma multidão que o constitui, pré-individualidades e singularidades anteriores a toda a forma constituída como «indivíduo» ou «sujeito». No estado a-subjectivo, a existência acontece entre a singularidade e a multidão: enquanto único e singular, o artista em devir existe como uma multidão, e essa multidão faz dele um elemento da Natureza.
Devir é então tornar-se Natureza, é popular-se com a Natureza, é tornar o seu corpo um fragmento do cosmos universal: animal, flor ou rio. O devir, segundo Deleuze, é um fenómeno que pertence ao mundo dos afectos e dos perceptos puros, onde uma vida se manifesta como vida imanente e liberta das suas amarras subjectivas, uma vida independente das vivências pessoais. Devir é romper as coordonadas subjectivas, é desenraizar as referências humanas. O mundo do devir está para lá de toda a esfera pessoal e subjectiva: lembranças, imaginações, viagens, sonhos, opiniões, estados perceptivos e passagens afectivas das vivências. Como Deleuze explica : «o percepto é a paisagem antes do homem, na ausência do homem (…). Os afectos são precisamente esses devires não humanos do homem, como os perceptos (incluindo a cidade) são as paisagens não humanas da natureza»[5]. O devir é então esse estado não humano do homem, essa paisagem não humana da Natureza, onde os afectos e os perceptos existem por si, em si, como devires, na ausência do homem.
O artista é aquele que entra em devir, isto é, que encontra e se junta ao mundo, que se mistura com a Natureza, que entra numa zona de indiscernabilidade com o universo. Van Gogh entra no devir-girassol, Kafka no devir-animal, Melville no devir-baleia de Moby Dick, Messiaen no devir-ritmo e melodia. Essa zona de indiscernabilidade, esse ponto de indistinção entre o homem e o animal ou o mundo inteiro, isto é, o devir, dá-se no afecto. Por isso, como Deleuze escreve: «O artista é o mostrador de afectos, o inventor de afectos, o criador de afectos, em relação com os perceptos ou as visões que ele nos dá. E não é só na sua obra que ele os cria. Ele também nos dá afectos e faz-nos devir com eles (…). A flor vê (…). A arte é a linguagem das sensações, que o artista passa pelas palavras, pelas cores, pelos sons e pelas pedras»[6].
O afecto, explica Deleuze, «é uma zona de indeterminação, de indiscernabilidade, como se as coisas, os animais, e as pessoas (Achab e Moby Dick Pentesileia e a cadela) tivessem atingido, em cada caso, esse ponto que, apesar de infinito, precede imediatamente a sua diferenciação natural»[7]. O afecto é o estado de uma vida que precede a diferenciação natural entre os seres formados, o estado onde toda a forma se dissolve. Ele pertence a um estado pré-individual, onde o homem não se distingue do animal ou do vegetal, onde todos os seres são a-subjectivos. O afecto é o grau zero do mundo, sem ser por isso um retorno ao estado primitivo da vida. É antes a sua recriação, o recomeço do mundo. Nas palavras de Deleuze: «Não se trata senão de nós, aqui e agora; mas aquilo que em nós é animal, vegetal, mineral ou humano já não se distingue»[8].
A radicalização do programa anti-humanista é ainda mais forte quando Deleuze afirma que o pensamento – aquilo que, como vimos, constituía para Aristoteles o que há de mais específico no homem – tem a forma de um rizoma. Para o modelo clássico, o pensamento é como uma árvore, organizado segundo a lógica dicotómica da oposição, e constitui-se a partir da ideia de verticalidade e totalidade segundo a qual os pontos ramificam-se e unem-se a outros que são da mesma dimensão. A árvore define um centro, hierarquiza. Mas, para Deleuze, o pensamento tem um funcionamento diferente. Pela transbordância, pela intersecção, pela simbiose, ele escapa constantemente a uma organização segundo a imagem-árvore, isto é, ele ultrapassa toda a dualidade. Num rizoma, um ponto qualquer pode ser ligado a todos os outros. À dicotomia, à oposição, à ordem arborescente, o rizoma opõe cadeias de conexão múltiplas e heterogéneas, sem eixo ou estrutura central. E, porque que ele é descentrado, o rizoma torna possível o cruzamento de diversas dimensões. Ao contrário de uma árvore, um rizoma não tem rupturas marcadas e significantes, que separam segmentos ou estruturas. Num rizoma, o que está bloqueado, partido, interrompido, retoma as suas conexões através de outras das suas linhas, nomeadamente as linhas de fuga ou de desterritorialização, sem cortes abruptos, definitivos e significantes. No rizoma não existem senão linhas, as quais fazem proliferar o pensamento na sua multiplicidade. Em lugar da dupla sujeito/objecto, o que existe são intensidades e singularidades, existências a-subjectivas que, funcionando como rizomas, se encontram, se cruzam por meros acasos e formam uma multiplicidade heterogénea.
Definir o pensamento como rizoma significa portanto descentrar o pensamento das faculdades que lhe estão desde sempre associadas: razão, imaginação, entendimento, sensibilidade. No lugar das faculdades, Deleuze propõe o conceito de cérebro, de micro-cérebro, como existência de um pensamento presente em todas as formas da Natureza, mesmo ao nível das plantas e dos rochedos. O pensamento deixa portanto de ser exclusivo do homem. O pensamento encontra-se nas existências mais elementares, nas mais embrionárias, enquanto pura faculdade de sentir. Este vitalismo essencial a toda e qualquer forma de existência, este pensamento tanto do homem como das plantas e dos rochedos, Deleuze condensa-o numa expressão: a vida inorgânica das coisas. «Nem todo o organismo é cerebrado, e nem toda a vida é orgânica, mas há por todo o lado forças que constituem micro-cérebros, ou uma vida inorgânica das coisas»[9]. No momento de pensar o cérebro, Deleuze faz a sua afirmação mais radical do seu programa anti-humanista: «É o cérebro que pensa e não o homem, o homem é só uma cristalização cerebral (…). A filosofia, a arte, a ciência não são objectos mentais de um cérebro objectivado, mas os três aspectos segundo os quais o cérebro se torna sujeito, Pensamento-cérebro»[10]. Nesta perspectiva, a arte é experimentação cerebral, isto é criação artística de uma vida inorgânica imanente ao homem, ao animal, às plantas e aos minerais. Por outras palavras, a arte é, para Deleuze, um exercício inorgânico do micro-cérebro como uma nova forma de pensamento.

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Na imanência do cérebro em todas as formas de existência, desde os organismos vivos até ao inorgânicos, podemos pois perceber que a arte como dispositivo de delimitação de território – cores dos peixes, posturas e cantos dos pássaros, tropismos botânicos – e como processo de devir-mundo, não é senão a expressão de um Pensamento-cérebro. Trata-se pois de uma nova experiência do pensamento, já não como racionalidade exclusiva do Homem, mas como conexão rizomática com o mundo.

Deleuze transformou por completo a nossa compreensão do Homem, forçando-nos a entrar na escola da Etologia, da Geodesia, da Topologia, da Neurologia, qualquer coisa como uma Biologia do inorgânico. Como ele escreve: «não há mais distinção homem-natureza: a essência humana da natureza e a essência natural do homem identificam-se na natureza (…). Não o homem enquanto rei da criação, mas antes aquele que é tocado pela vida profunda de todas as formas ou de todos os géneros, que está carregada de estrelas e mesmo de animais (...). Homem e natureza não são como dois termos (...), mas uma única e mesma realidade»[11]. Mais de dois mil anos depois de Aristóteles, a fronteira entre o homem e o animal é assim dissolvida. Homo Natura em vez de Homo Sapiens.
[1] Mille Plateaux, Paris : Minuit, 1980, p. 389 (nossa tradução).
[2] MP, p. 390.
[3] Qu’est-ce que la Philosophie, Paris : Minuit, 1991, p. 174 (nossa tradução).
[4] QPh, p. 175.
[5] QPh, pp. 159-160.
[6] QPh, p. 166.
[7] QPh, p. 164.
[8] QPh, pp. 164-5.
[9] QPh, p. 200.
[10] QPh, pp. 197-8.
[11] L’Anti-Oedipe, Paris : Minuit, 1972, p. 10 (nossa tradução).